"Tudo aquilo que escrevi sobre teletrabalho até chegar a pandemia tem de ir fora. Isto não foi teletrabalho, foi uma aculturação à bruta, mas o caminho está traçado". Foi desta forma muito peculiar que o orador convidado Doutor Duarte Abrunhosa e Sousa lançou ontem ao fim da tarde (14 de julho de 2020) o debate no Webinar “Teletrabalho no Direito: os Direitos no Teletrabalho”, organizado pelo Canal4 da AFIET - Associação para a Formação e Investigação em Educação e Trabalho, com moderação de José Cordeiro, Secretário-Adjunto da UGT e Pedro Barreiros, Diretor do Canal4 e Vice-Presidente daquela associação.
Reconhecido especialista no campo académico e profissional, Duarte Abrunhosa e Sousa sublinhou que o teletrabalho era ficção científica em Portugal, até ter surgido a pandemia do COVID-19, que acabou por nos deixar com uma visão idílica do tema. Em sua opinião a legislação portuguesa sobre teletrabalho é ótima, mas contém algumas falhas, até porque não temos jurisprudência em Portugal, nem uma prática profunda do legislador nesta matéria.
Para Duarte Abrunhosa e Sousa, o teletrabalho é em termos sindicais um tema crítico para desenvolver, existindo uma nítida janela de oportunidades, mas em que ele desconhece como, em termos de negociação coletiva, se poderão atingir bons objetivos, que satisfaçam empregadores e sindicatos. Porém, defendeu que seria muitíssimo interessante que empregadores e sindicatos pudessem ser líderes nesta questão, podendo até chegar a um ponto em que poderiam mesmo influenciar o legislador, através da aceitação de boas práticas na negociação. Depois é necessário que haja uma aculturação do teletrabalho, mas jamais nas condições proporcionadas pela pandemia.
Outra das suas mensagens é que este tema está em constante desenvolvimento. Daí considerar que a maior parte dos documentos existentes se encontrarem já desatualizados, incluindo o acordo firmado pelos parceiros sociais europeus: “A própria Comissão Europeia está neste momento a abrir caminhos novos para o teletrabalho, o que poderá vir a acontecer através de uma diretiva. O que seria muito positivo seria a existência de inovação através da negociação coletiva, mas os tempos de pandemia não são um bom exemplo”. Depois adianta: “O teletrabalho é passado, pois na verdade já surgiu uma nova tipologia de temas”.
Duarte Abrunhosa e Sousa repete que um excesso de regulação é mau e que o Código de Trabalho não é para ir aos detalhes: “Isto cabe aos sindicatos e aos empregadores na negociação coletiva, mas façam negociação coletiva a longo prazo”, recomenda, não a curto prazo. “O Código de Trabalho não define o conceito de teletrabalho, mas tem tudo o que é necessário. Temos por exemplo uma responsabilidade tremenda com a proteção do meio Ambiente e os parceiros sociais devem aqui dar o exemplo de serem líderes na estratégia, podendo levar o legislador a estimular o teletrabalho, por exemplo através de benefícios fiscais”.
Nem tudo é negativo no teletrabalho
Empurrados pelos acontecimentos da pandemia de COVID-19, os portugueses viram emergir o tema do teletrabalho, com dúvidas, incertezas e inseguranças, relativamente ao seu quadro legislativo, às suas especificidades, a constrangimentos e desafios. Mas esta situação trouxe também fatores e oportunidades considerados muito positivos para o mundo laboral.
Para Duarte Abrunhosa e Sousa, que tem 15 anos de experiência como advogado em tribunais portugueses e também no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o contexto de pandemia tem proporcionado uma situação atípica no âmbito do teletrabalho. Pela simples razão de que "tudo tem sido complexo e o legislador, com a pressão, tem errado bastante e cometido um erro - para mim - enorme que é tentar resolver tudo com FAQ's. Estamos no momento em que é fundamental legislar bem. As pessoas estão a entrar na 'paranoia' de que vamos ficar neste regime de trabalho para sempre. Mas não vai ser assim", acrescentando que "o facto de o trabalhador aceitar o subsídio de alimentação como uma espécie de compensação pela utilização do material necessário no domicílio, reforça o tal caráter atípico da situação que já referi".
Questionado por José Manuel Cordeiro sobre a forma como a Educação pode lidar com este regime laboral, o orador convidado considerou que "é irrealista pensarmos que o nosso normal vai deixar de incluir o convívio social. Nenhuma empresa ou instituição criam uma identidade própria pelo computador. Esqueçam isso. É necessário existir sempre um espírito de equipa e isso também passa pelas relações entre professores e alunos nas escolas e universidades", afirmando ainda que "surgem depois questões críticas como o controlo, os horários de trabalho e a relação de subordinação que perde em alguns fatores, no caso das empresas, com a falta de proximidade".
Mas nem tudo em teletrabalho é negativo. Existem vários pontos positivos e este webinar serviu precisamente para mostrar também a janela de oportunidade que esta fase criou, pois foi possível perceber as possibilidades que se abrem na conciliação entre a vida profissional e pessoal no trabalho remoto. Também a ausência de deslocação foi visto como algo positivo, não só para o bem estar do trabalhador, mas também do planeta, pois menos viagens são sinónimo de menos poluição, com o lado verde desta questão a ser referido por Abrunhosa e Sousa como um ponto "que em Portugal, em toda esta discussão sobre a parte sindical e laboral, não se dá o devido valor".
Outros fatores positivos apontados foram o equilíbrio que as empresas alcançam na utilização de espaços menores, sendo que o sistema misto, ou seja, com equipas em alternância a trabalhar em casa ou no escritório, a ser considerado pelo especialista "como a melhor solução. E em casa posso usar o tempo que poupo em deslocação para fazer outra coisa qualquer e com isso aumentar a minha qualidade de vida. Até no dormir mais estou a acrescentar algo ao meu bem-estar".
As condições de trabalho no domicílio são umas das situações mais questionadas pelos trabalhadores portugueses, pois teletrabalho "não é apenas um computador e uma mesa, mas também as questões ergonómicas, onde a cadeira que é utilizada no trabalho em casa tem bastante importância para questões musculoesqueléticas, por exemplo. E é por isso que eu digo que o teletrabalho era ficção cientifica em Portugal", acrescentando ainda que "a nossa legislação é boa, abrangente, apesar de ter problemas por resolver, principalmente porque se debruça mais sobre a posse de materiais do que sobre as condições de trabalho".
A respeito destas, Duarte Abrunhosa e Sousa assumiu que as condições nunca serão iguais para todos. Mas defende que "o trabalhador que não tem condições para o teletrabalho, deve avisar. Não vamos imaginar que uma empresa que tenha mil funcionários em teletrabalho vá a casa de todos fazer verificação de condições. É por isso que defendo que aqui o papel do legislador é fundamental para dar respostas, pois sabemos que as regras não podem ser iguais para todos, mas a lei pode e deve definir condições básicas e mínimas para o cumprimento em condições do trabalho fora do escritório".
"As pessoas adaptaram-se mais rápido que a legislação”
Abrunhosa e Sousa deixou uma palavra aos trabalhadores da Educação que, segundo ele, "fizeram algo extraordinário. Se há um ano nos contassem que íamos ter de viver isto, ninguém acreditava que se conseguisse fazer tanto com tão pouco. Ficou demonstrada a capacidade de adaptação a cenários adversos, tanto nas escolas como nas universidades, e as pessoas acabaram por se adaptar mais rápido ao teletrabalho que a própria legislação".
O legislador tem agora vários desafios pela frente, que passam pela defesa da ergonomia do trabalhador em casa e também pela segurança e saúde no trabalho. Mas apesar das falhas que a legislação apresenta "a confiança tem surgido de forma surpreendente. Obviamente que as empresas vão ter de arranjar forma de controlar de forma informática os horários de trabalho, mas provavelmente essa visão entanque do modo de trabalho normal vai ter de ser alterada porque está ultrapassada", apontando a flexibilização de horários como uma possibilidade de solução a ter em conta: “O ideal, como já referi, era um regime de isenção de horário, não remunerado, mas que permitisse a gestão do tempo. Para mim, esse devia ser o caminho a seguir em base de concertação social, de modo que não se percam as vantagens que o teletrabalho proporciona”.
No período reservado a questões dos participantes, as perguntas mais colocadas versaram precisamente sobre as regras e os horários de trabalho, com o Doutor Duarte Abrunhosa e Sousa a sugerir que “os sindicatos e os empregadores fossem líderes e não seguidores na negociação laboral, ou seja, que dessem exemplos concretos e que mostrassem ao legislador como o teletrabalho é uma oportunidade para melhorar o papel dos trabalhadores e o seu bem-estar enquanto cidadãos. Porque no fundo o que difere o trabalho normal do teletrabalho é o local onde ele é realizado: tanto pode ser em casa, como numa esplanada perto da praia. Mas também defendo que em Portugal precisamos de uma nova cultura e de abandonarmos a ideia de que trabalhar fora do horário de trabalho é algo meritório aos olhos de quem manda". Outro fator que temos que ter sempre em mente é que os problemas do trabalho presencial não desaparecem no teletrabalho: “A pressão até pode ser inferior, mas os desafios vão sempre estar lá", notou o orador convidado.
Em suma, para Duarte Abrunhosa e Sousa, a definição de teletrabalho no artigo 165 do Código de Trabalho carece de aperfeiçoamentos, mas mais importante do que definir o conceito é necessário descrever o modo como o teletrabalho deve ocorrer: “Vamos enfrentar uma realidade pré e pós COVID-19, pois as empresas já perceberam a mudança de paradigma e isso cria um desafio ao legislador, que tem de acompanhar e perceber toda essa mudança, de forma que permita um equilíbrio na relação laboral entre empregador e trabalhador”.